sexta-feira, 28 de maio de 2010

O Outro

Fogo

- Você tem outro por dentro...

Foi sua mãe que lhe disse, pela primeira vez, a frase assustadora. Outra pessoa dentro do seu corpo. E agora essa! Como se não bastassem todos os seus outros terrores. O escuro. A certeza de que tinha um monstro embaixo da sua cama. Banho. Matemática. Leite de Magnésia. Roque, o colega de aula maior do que ele, que vivia ameaçando lhe bater. Outro por dentro!

Era tímido. Quieto. Míope desde pequeno. Introspectivo. Mas às vezes fazia coisas que ele mesmo se surpreendia. Travessuras. Maldades com o gato. Atos súbitos de rebeldia. E de coragem também. Agora sabia. Ele era ele, aquele que via no espelho. Um menino sério e bom, incapaz de insultar um mosquito, quanto mais matar uma mosca. O Outro é que fazia loucuras. O monstro não estava embaixo da cama, estava dentro dele.

No começo, teve pesadelos. Imaginava que acordaria no meio da noite e encontraria o Outro ao seu lado. Os olhos brilhando no escuro, de maldade.

- Que-quem é você?

- Você sabe. Eu sou o Outro que você tem por dentro. Ou melhor, tinha. Resolvi sair e tomar o seu lugar.

O Outro o engoliria vivo. Ele passaria a ser o que o Outro tinha por dentro. Sua mãe e seu pai não notariam a diferença. Só saberiam que o Outro tinha tomado conta tarde demais, quando ele incendiasse a cama do casal com o casal em cima.

Depois pensou que até seria divertido deixar o Outro tomar conta. Queria ver a cara do Roque quando o provocasse para uma briga sem saber que ele não era ele, era o monstro. O Outro demoliria Roque com seu repertório de golpes sujos. E aproveitaria o impulso pra pular na mesa da professora de matemática e fazer xixi na sua cabeça. Seria o herói da turma. E expulso do colégio.

E ele dentro do Outro, um menino sério e bom, tentando controlá-lo. A consciência do Outro. Faria o possível para lhe dar remorso e auto controle. Mas não se responsabilizaria pelos seus atos. Quando morresse iria para o Céu. Qualquer dúvida sobre o seu comportamento na Terra e diria:

- Não fui eu, foi o Outro.

O Outro jamais tomaria banho ou leite de magnésia. E poria o dedo no nariz até na frente das visitas.

...

- Você tem outro por dentro, hein?

Quem lhe disse a frase, anos depois, foi uma namorada, surpreendida com a sua audácia. Ele, um rapaz tão quieto, tão respeitador...

A esta altura ele já convivia naturalmente com o Outro. Até lhe dera um nome. Rudimar Pombão, vulgo Rudi. Ou, ainda, El Hormonal. O maior libido do Ocidente. Vivia em comunicação interna com o outro. O Outro lhe dava ordens.

- Agora. Vai!

- Você está doido.

- Vai! Ela está querendo. Vai

- Assim, sem mais nem menos? Sem dizer nada?

- Diz que você está morrendo de amor e precisa de uma respiração boca a boca. Diz que tem problemas de circulação e precisa esquentar a mão. Diz qualquer coisa. Mas vai!

- Não posso.

- Então sai daí e deixa comigo.

E Rudi tomava os controles. Às vezes a surpresa era tanta que não havia resistência. Mas às vezes havia.

- Eu não disse? Não era a hora. Você precisa se controlar, Rudi.

- Está bem, está bem. Não deu certo. Esquece.

- Você faz a bobagem, mas quem leva o tapa sou eu.

- Esquece

...

Anos mais tarde, achou que a situação era insustentável. Foi a um psicanalista.

- Me parece haver um processo de esquizofrenia latente, decorrente de uma sublimação exagerada do id pelo ego e...

- Id, ego...Essas palavras grandes me confundem. O que o senhor quer dizer, doutor?

- Você tem outro por dentro.

Era a confirmação científica. Rudi estava lá e pretendia ficar.

...

Na meia idade, tendo aprendido a disfarçar sua timidez com ironia e algumas inesperadas frases de espírito, costumava ouvir a frase. Já tinha uma resposta pronta.

- Você tem outro por dentro.

- Não, não. Eu sou gordo assim mesmo.

Já não dava muita atenção para o Outro. Ele era ele, aquele que via no espelho, só mais velho. Paciência. O Outro protestava:

- Mas que paciência? Reage, rapaz. Eu não estou pronto para a meia-idade. Estou com dezessete anos, no máximo vinte. Vamos lá. Barriga pra dentro! Peito para fora! Lentes de contato! El Hormonal ainda nem começou a lutar.

- Sossega, Rudi.

- Nunca! Quando você morrer, vão ter que me levar arrastado. Vou protestar até o fim do velório. Vamos embra. Discotecas! Pré-pubentes! Romance! Intriga! Emoção!

- Eu não quero, vai você.

- Mas eu preciso de você, diabo! Sem você não posso ir a parte alguma...Também, o veículo que eu fui escolher. Eu não mereço. Eu não mereço!

- Você eu não sei, mas eu vou me deitar pra ler.

- Claro. Excitante. Ultimamente nós só vamos para a cama com a Agatha Christie...

- Não é verdade. Na semana passada foi com a Liv Ulmann.

-E a ironia... Eu não mereço.

- Quieto.

- Se eu ao menos pudesse pedir transferência. Para o John Travolta. Sei lá.

- Shhh.

- Olha aí. Não vai nem ler. Vai dormir. Nem a Agatha Christie o excita mais. Ei! Careca!

- Shhh...

- Acorda! Me deixa sair! Eu quero sair!

Mas os dois fecham os olhos.

(Luiz Fernando Veríssimo)

Nenhum comentário: