segunda-feira, 30 de junho de 2008

Vista cansada



Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta
como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez?
Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar
pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem
não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado
como acabou.


Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta.
Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto
ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela
primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não
é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade.
O campo visual da nossa rotina é como um vazio.


Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe
perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto
ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio
pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo,
o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado
ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de
falecer.


Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima
idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que
morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito,
pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja
os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente,
coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.


Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos
para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez
o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho.
Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos
olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração
o monstro da indiferença.

(Otto Lara Resende)

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